#54: A escuridão é plana

Kah abomina o escuro. Não a escuridão. Nem tem medo do escuro, no sentido infantil da fobia. Lembra-se de acordar a meio da noite, em absoluto breu e não conseguir ter qualquer percepção espacial. A ausência de luz não lhe permitia aperceber-se das formas ou do espaço envolvente. O sono não lhe trazia a memória de onde estava ou em que posição. Por mais que abrisse os olhos e procurasse referências, apenas via o negro liso da noite. A vagueza deu lugar ao pânico momentâneo. Olhar o vazio e apenas receber o descontrolo de si mesmo apavorara-o. Apenas o candeeiro da mesa de cabeceira devolveu espaço e tempo e lucidez ao pequeno espanto de Kah. Por isso dorme sempre com uma fatia dos estores aberta. Para que a lua dilua a planura da noite.

#52: Pianos velhos

Chá de pianos velhos 800px

Compro um chá novo, demoradamente escolhido no escaparate vasto.
Solto a água sobre as folhas e logo se revela a infusão de cobre pálido. Como se libertasse um génio à espera de escapar numa taça.

O chá de gengibre e ginseng sabe a pianos velhos.

Ocorre-me
música para beber, talvez um arpejo longo para aquecer os músculos, mais tarde uma sonata ou uma gymnopédie.
Como se reencontrasse as teclas todas, tão imensas. Como voltar à casa de infância.

Surpreendo-me com o lugar que encontro. Não esperava a sala cheia de pianos, os bordões a saber a moedas, as páginas de partituras anotadas a grafite sobre o papel grosso, a madeira evaporando-se para todo o lado.

Satie em estado líquido, numa chávena, basta juntar água.

#50: Sem ter de explicar as fotografias para sempre

Uma tarde, num lanche naquele café, ele disse-lhe:
– Sabes…
– Hmmm.
– Às vezes vejo fotografias antigas de quando éramos miúdos. E custa-me que não estejas lá e que tenha de te explicar uma coisa que não viveste.
– Mas mostras agora! E adoro conhecer o que eras antes de te conhecer.
– Sim. Mas…
– …
– Quando penso que já não tenho de não te conhecer fico aliviado e contente. Já não há mais fotografias em que não caibas, percebes? É isso.

Maya continuou a segurar a chávena de chá contra os lábios e, sem saber bem porquê, tentou esconder baixinho a emoção.

E soube que o amava.

#49: Os melros e as ervinhas e nós

Ervinhas 02_800px

Hoje o dia nasceu fechado. Nuvens sobre nuvens sobre nós.
Portanto resolvemos sair para correr.

Os melros ficam à chuva a olhar para nós.
O parque parece um jardim zen, a erva aparada em carreirinhos desenhados pelo tractor que o jardineiro encaminha sem pressa.
Os bugalhos polvilham o alcatrão (sei-os antes de os ver). Contorno-os inspirando profundamente.

Sempre nos ensinaram que nos agasalhássemos, que fugíssemos da chuva, que voltássemos as costas ao vento, que temêssemos o frio.
E no entanto o vento parece correr connosco e a chuva parece rir o tempo todo sobre as folhinhas e os postes e a terra debaixo dos ténis.

Correr à chuva sabe a comer chocolate às escondidas e sujar as mãos todas.

E encho-me de paz…

#48: Serradura criativa

Serradura Criativa

No museu:

 

A: A arte conceptual deve ser apreciada como materialização de um processo crítico ou de um percurso interpretativo de um determinado componente sob reflexão.

B: …

A: O problema é que essa síntese nem sempre é explícita aos olhos do receptor da mensagem.

B: …

A: No fundo, é mais afirmação intelectual que composição estética, ‘tás a ver?

B: Mas aquela peça está cheia de serradura à volta…

A: Nao é serradura, é processo criativo!

 

(Imagem: One and Three Chairs, de Joseph Kosuth.)

#47: Comprido e fino

Comprido e fino 800px

De vez em quando encontro pessoas que abusam da expressão “para ser curto e grosso”, em reuniões ou conversas de esquina, o que pode rapidamente tornar-se irritante. Para além de ser uma expressão pateta, quando é incessantemente repetida por pessoas que acham que lhes dá um certo élan de petiscaria de bairro, acaba por se tornar abstrata, como naquele exercício do estranhamento das palavras do Vergílio Ferreira. Só que com menos classe. Sugiro que tentem ser “compridas e finas” por uns dias. Só para variar.

#46: O fim da Internet

Flammarion_800px

Literalmente. Chegou ao fim da Internet. Por favor volte para trás. Por hoje, acreditamos que é quadrada e plana, portanto pode cair e a coisa fica feia. Amanhã talvez possamos descobrir que é redonda e aí não importa por onde ande.

(Imagem: Gravura de Flammarion.)

#45: Metáfora

Maya carrega sempre as suas compras no compartimento pequenino do carrinho do supermercado. Aquela cadeirinha onde sentamos os bebés, em que quase não se repara e que se tem de abrir para existir. Mas ela repara sempre. Nunca coloca o que quer que seja das suas compras no cesto grande do carrinho. Não sabe bem explicar mas, bem cheia, a parte pequenina transmite-lhe uma sensação de conforto. De controlo. De ter algo cheio. As compras todas soltas na imensidão do carro seriam enervantes, sugerindo baixinho que algo falta, algo ficou esquecido, algures na tua vida qualquer coisa está por acertar.

E Maya havia de passar pelo dia com aquela sensação com que ficamos nos momentos em que nos é devido um descanso, mas que se instala e nos sussurra que algo está errado por não estarmos preocupados ou tensos ou a correr atrás de algo. Como se estivéssemos em falta.

Já basta de pressões. Acha que tem mais em que pensar que nas compras que lhe dizem como organizar a vida. Por isso, traz o carrinho cheio, mas só em parte.

#43: This is what happens when you leave the highway

Fora_1_800pxFora_2_800pxFora_3_800pxFora_4_800pxFora_5_800px

The tarmac is now a thin liquid strip dragging you downstream to some place you don’t really need to know.

Your brain slows down until you are able to marvel at the stillness that blankets trees and puddles and moors.

Your lungs remember how to breathe deeply,

Clouds become clearer and the sky gets crisper,

And you try to capture it in some fashion, but somehow no method ever seems to retain the atmosphere properly. Maybe all there is left to do is an evocation –  it is up to your mind to fill in the blanks.

And your car gets really dirty.

#40: O Rambo não cozinha

Mudei de canal e, numa daquelas coincidências que só costumam acontecer nos filmes, o Rambo estava a lançar a famosa flecha com a granada agarrada – usou daquela fita-cola forte cinzenta, suponho –, em direcção a um helicóptero dos maus. Lá dentro, um piloto mal encarado esbugalha os olhos e grita um urro mudo qualquer que nós – espectadores – não percebemos, porque sabe que já não vai a tempo. Deve ter lido o script e, para mais, toda a gente sabe que o Rambo não falha. CABUM! Lá se vai mais um Apache para o galheiro!

O piloto do Apache do lado não hesita e lança-se em perseguição do Rambo. Vemos-lhe as mãos atarefadas nos comandos e o esgar sedento de vingança. Entretanto, estas coisas deram tempo ao Rambo e ao amigo de se esgueirarem para uma cova, que afinal – mostra-nos o realizador – dá para uma gruta que apareceu convenientemente por ali. O piloto apressa-se a largar uma carga de napalm para a entrada da gruta e só nessa altura é que o Rambo decide dar corda ao chinelo. Põe nos queixos aquela expressão de urgência masculina que lhe é tão típica (a recorrência destes trejeitos entre filmes ajudam-nos a perceber o que lhe vai na alma em cada cena) e larga numa correria desenfreada até se agarrar a uma corda também convenientemente pendurada para dentro da gruta pelo amigo.

Nisto o napalm escaqueira com tudo à superfície e ameaça envolver o Rambo numa nuvem de labaredas, o Rambo corre, a música fica cada vez mais perigosa, o Rambo com o queixo urgente cada vez mais ao lado, o amigo a chamá-lo, cada vez mais histérico, grande suspense… e, claro, o herói termina a fuga com uma cambalhota clássica, com a qual escapa às chamas sem mazela.

É nesta altura que me ocorre que 1) o Rambo é muito ingénuo; ou 2) o Rambo não cozinha. Então não é que o palerma vem para estas andanças em troco nu?!

Ainda no outro dia tive a ideia estúpida de saltear galinha em tronco nu. Nunca o faço nem costumo armar grande chavascal, mas havia de ser o dia de entornar azeitinho quente sobre a pele.

O resultado não foi o mais agradável e recordei a regra de ouro da cozinha: proteger sempre a pele das potenciais queimaduras. O Rambo devia saber do mesmo, uma vez que o seu trabalho consiste em andar por sítios inóspitos a estoirar tudo pelo caminho. O sacana anda a rebolar pelos cacos do Mundo e regressa ao quartel incólume, mas quando nos toca a nós, deixamos no ar o aroma a bacon flambé. E ainda insiste em enfrentar os inimigos de peitorais ao léu…

Create a free website or blog at WordPress.com.